Outro dia compartilhei alguns vídeos no Face. Um deles da irlandesa - e também cinquentona -Eithne Ní Bhraonáin, ou "Enya", como é mais conhecida.
Meu comentário na postagem foi o seguinte: "Para Ricardo, que gostava de Enya, mas amava Leila. Onde quer que vocês estejam agora...".
Algumas horas depois, viajei no tempo, e voltei a um dia muito específico, do qual jamais vou esquecer.
Tínhamos ido a Gramado visitar meu pai e sua segunda esposa, Gilda, por quem tenho uma gratidão eterna pelo cuidado que dedicou a ele até o fim.
Ele já estava muito doente, e sabia que, mais dia menos dia, o ar iria faltar.
Em virtude de um enfisema pulmonar crônico, muito severo - um presentinho do seu "Companheiro Maldito", também conhecido por "Cigarro" - ele dependia de uma máquina de oxigênio 24 horas por dia, e só levantava da cama para as necessidades mais básicas.
Meu pai sempre contava que começou a fumar muito cedo. Tanto que seu apelido era "Polaco Fumador".
Logo no início da visita, ele chamou ao seu quarto minha irmã Dilana e eu, para uma conversa em particular.
Senti que o pai estava diferente naquele dia. Um pouco mais triste, um pouco mais sério, mas, ao mesmo tempo, tranquilo.
Assim que ficamos a sós, ele começou a falar de morte, da sua própria morte, e dos procedimentos imediatamente seguintes a ela.
Primeira providência: ele queria ser cremado.
Já havia se informado sobre o assunto, e nos passou todos os detalhes.
Tentei encerrar aquela conversa mórbida. Mas ele insistiu.
Finalizada sua breve explanação, perguntei:
- Tá, e depois, o que fazer com as tuas cinzas? (só quem passou por uma situação dessas pode saber como me senti naquele momento, de modo que não vou nem tentar explicar).
Ele respondeu, com essas exatas palavras:
- Olha, não quero minhas cinzas aqui em Gramado. Odeio esta cidade fria e úmida, cheia de velhos caquéticos andando por aí! (meu pai detestava o frio, e dizia que aquela era a cidade com "mais velhos por metro quadrado do mundo!").
- Novo Hamburgo já não me diz muita coisa, pois meus pais já morreram há tanto tempo (meus avós estão enterrados lá, e imaginei que ele quisesse ficar junto deles).
- Porto Alegre, então, nem pensar! Nem sei como vocês conseguem viver naquela loucura! (ele nunca gostou de Porto Alegre).
Nesse ponto, ele parou de falar, e instalou-se um profundo silêncio naquele quarto.
Mesmo com a voz embargada, a ponto de chorar, consegui perguntar:
- Onde, então? Em Lajeado? (é onde está enterrada minha mãe, num daqueles túmulos duplos, de casal, um ao lado do outro).
E ele, prontamente, respondeu:
- Ah, isso me serve!
E foi só o que ele disse.
E era só o que precisávamos ouvir.
E, então, mudamos totalmente de assunto.
Passado mais algum tempo, meu pai pediu ao meu irmão Ricardo - que para mim sempre foi o "Mano" - que suas cinzas fossem levadas ao túmulo ao som de Enya.
Assim ele pediu.
E exatamente assim nós fizemos.
Depois da sua morte, das honras fúnebres prestadas em Gramado pelos familiares e amigos, e da cremação em São Leopoldo, cumprimos o prometido.
Foi uma homenagem muito simples.
Éramos somente seus 4 filhos, e mais ninguém.
Relembramos algumas histórias do "Velho Buk" - como nós o chamávamos - e até rimos de algumas delas, porque meu pai foi, realmente, uma figura!
E depois choramos.
Tudo isso ao som de Enya.
Além de cumprir sua última vontade, fizemos uma coisa que ele não havia pedido, mas que com certeza deve ter gostado.
Entre o túmulo da minha mãe e o dele, mandamos gravar a passagem bíblica que ele repetira um sem-número de vezes: "O que Deus uniu não o separe o homem." (Mc 10,9).
Meu pai afirmou até o último dia de sua vida que nunca deixou de amar Leila. Jamais se conformou com a separação.
Minha mãe, por sua vez, não ficou mais feliz depois dela.
Eu, que já passei dos 50, ainda nem superei a primeira separação deles.
O que dizer, então, da última, da derradeira, daquela que é definitiva?
E embora tenham se passado mais de 10 anos da morte do meu pai, toda vez que eu ouço Enya...
Da série "Passei dos 50", por Deborah Johansen.